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Indígena guarani transmite importantes mensagens na Conferência Mundial da Ayahuasca realizada no Brasil

Considerada uma das plantas sagradas da Amazônia, a ayahuasca (como é denominada internacionalmente) é provavelmente a mais conhecida depois do tabaco. Ela tem sido por milhares de anos fonte de aprendizado e cura espiritual para muitos povos indígenas amazônicos, que a consideram um medicamento, uma professora e uma ponte para o mundo espiritual, conectando o espírito humano com o da floresta. Ao longo do último século, a “planta professora” ultrapassou os limites da Amazônia e se tornou conhecida no mundo todo.

A II Conferência Mundial da Ayahuasca foi realizada de 17 a 22 de outubro de 2016 na capital do Acre, “um dos epicentros da ayahuasca”. O evento reuniu uma grande diversidade de tradições e práticas relacionadas à ayahuasca, incluindo povos indígenas amazônicos, representantes de igrejas de ayahuasca brasileiras (como o Santo Daime e a União do Vegetal), cientistas, antropólogos, vários praticantes do neoxamanismo da América do Norte e da Europa, entre outras pessoas. Seu objetivo declarado era propiciar o diálogo e o intercâmbio de conhecimentos e experiências entre a comunidade internacional da ayahuasca.

Foram representados na conferência 17 povos indígenas dos estados do Acre e do Amazonas, além de alguns indígenas do Peru e da Colômbia, compondo um total de 150 participantes da população nativa da região. No entanto, muitos deles manifestaram objeções por terem sido pouco envolvidos na criação e organização do evento. “Fomos convidados em nossa própria casa. Somos estrangeiros em nosso próprio território”, declarou Daniel Iberê, guarani mbya do Acre.

A conferência foi organizada pelo Centro Internacional para Educação, Pesquisa e Serviço em Etnobotânica (International Centre for Ethnobotanical Education Research & Service, ICEERS), uma fundação europeia que trabalha para levar o conhecimento etnobotânico de povos indígenas e seu potencial de cura a terapias ocidentais e à sociedade em geral. Parte importante do trabalho da instituição é proporcionar aconselhamento sobre serviços jurídicos e apoio emocional àqueles que bebem a ayahuasca em todo o mundo. A primeira edição da conferência foi realizada na cidade espanhola de Ibiza, o que gerou a desconfiança de alguns participantes indígenas amazônicos. Naquela ocasião, foi dado mais ênfase a questões legais e políticas do que culturais.

O encontro deste ano contou com maior representação de participantes indígenas, que, apesar do tempo limitado, puderam transmitir muitas mensagens de grande impacto. Hushahu Yawanawá contou sobre seu isolamento de um ano nas profundezas da floresta, quando seguiu uma rígida dieta para treinar e tornar-se uma das primeiras pajés mulheres do povo yawanawá. Carlos Llenera, um vegetalista shipibo, lembrou a todos os presentes que “curandeiros não curam; eles são apenas guias espirituais. As verdadeiras professoras são as plantas”. Já Benki Piyako, líder axaninca, recordou quando católicos lhe disseram que a ayahuasca seria “a poção do demônio”.

Diversos oradores indígenas relembraram a histórica injustiça e violência contra seus povos, mas foi Daniel Iberê – um jovem guarani mbya de Tekohá Jekupé Ajú, Rio Branco, Acre – que abordou de forma mais direta os 500 anos de história colonial e seu legado que permanece até os dias atuais, apresentando um claro e necessário contexto para os debates da conferência. 

“Hoje, eu vim descobrir aqueles que nos descobriram há mais de 500 anos” declarou Daniel.

“não há outra maneira de começar esta “fala”, sem dizer das lutas cotidianas que nós travamos. Uma luta contra o desaparecimento. Contra o desaparecimento de nossas culturas.”

Toda vez que você toma um copo de Kaapi, – nós também não chamamos de ayahuasca, nós temos nossos nomes antigos – toda vez que nós tomamos, é um copo, mas é um copo da nossa Cultura! É um copo dos nossos Ancestrais! E não é uma planta. Não é uma planta. Não, para nós…nossas plantas de cura são os nossos parentes.”

Ayahuasca Conference Indigenous Youth Brazil

A histórica opressão das tradições indígenas se manifesta de maneira igualmente violenta na legislação brasileira, que permite a preparação e o uso da ayahuasca apenas às igrejas de ayahuasca, mas não aos indígenas amazônicos. Essa lei burlesca, que nega a planta sagrada a seus usuários e guardiões originais e ancestrais, é mais um elemento de uma longa história de injustiças cometidas contra os povos indígenas do Brasil.

“Quinhentos anos nós buscamos nas fagulhas, no resto que sobrou das queimadas. Aqui tiveram as Correrias, no Sul teve os Bugreiros, que era uma outra forma de dizer daqueles que caçavam, matavam indígenas. E ainda tiveram também os Bandeirantes – a maioria deles estão com nomes em ruas, praças e são chamados de heróis. Mas sobre nós, nada testemunha a nossa passagem nessa terra. Não tem um lugar que se diga, ali é um território Guarani,

Toda vez que você abre alguma notícia está lá, a naturalização do que não é natural, a naturalização da violência, a naturalização do esquecimento. Todos os dias nós somos negados, mas nada se pode fazer, nada se pode tirar de nós – que é a nossa própria dignidade.

Querem descobrir a nossa cultura, pois nós temos que olhar no coração e ver se ele é transparente. Se não for transparente, mil anos se passarão e vocês não saberão nada sobre nós! Passaram-se quinhentos anos e vocês não saberão nada sobre nós, a não ser o que nós lhes dizemos! Nos mataram e, mesmo assim, não sabem nada sobre nós! Eu vou lhes dizer – sobre o desenvolvimento que disseram que viria. Nós olhamos e rimos. Sobre como nós devemos preservar a nossa floresta. Nós olhamos e rimos. – porque o parente que vem de longe, de outro mar, – é bem-vindo. Mas ele preservou o que ele tinha lá?

Eu gostaria de falar pra vocês – sobre as palavras bonitas do meu Povo, sobre as histórias do meu Povo, mas nesse momento acredito que o mais importante é falar como o meu Povo, como nós estamos sendo massacrados.

Peço desculpas, se minhas palavras se tornaram quentes, é porque as fagulhas da última chacina, da última queimada, ainda permanecem vivas na nossa memória. É daí que devemos começar. Meus parentes morrem todos os dias. Morrem mais do que no Iraque morreu – do Iraque todos ouvimos falar– dos parentes mortos não se ouviu falar. E não é apenas o morto por faca, por tiro, é a morte cultural, é a imposição do esquecimento: quando lhe dizem – você não é! – ou, você só é o que eu quero que você seja! – Como um quadro. Como uma fotografia fixa na parede, que você interpreta. Mas ela está parada. Nós não! Nós vivemos e nós sangramos. E não temos medo nenhum de partir para o outro lugar – porque lá tem mais parentes nossos do que parentes que não são nossos. Né?

Enquanto eu vos falo, neste exato momento, está acontecendo uma reunião para tratar sobre a patrimonialização da Ayahuasca. E, mais uma vez, nós saberemos apenas do resultado. E, a pergunta que eu faço é: – o que foi feito com a nossa cultura sagrada? Não se esqueçam, Ro repy! – Nós estamos de olho! Nós cobramos! Não se esqueçam!

Nós somos calmos, nós somos pacatos, nutrimos o silêncio. Mas nossos corações vomitam fogo! Não se esqueçam!

Daniel falou também sobre muitos de seus parentes que não puderam ir à conferência; alguns não quiseram comparecer, outros não puderam, e houve também aqueles que “não vieram em forma de protesto”. “Se meus parentes não são bem-vindos em um lugar, então eu também não sou”, declarou ao criticar a cota designada a indígenas para o evento.

Diversos participantes indígenas fizeram importantes perguntas sobre os benefícios que eles levariam de volta a suas comunidades e qual seria o propósito de sua presença na conferência. O clamor pelo reconhecimento foi reiterado durante todo o evento:

“Queremos compartilhar nossos conhecimentos, mas queremos também que fique bem claro que esses conhecimentos provêm dos povos nativos”.

No encerramento do evento, representantes dos povos indígenas do Acre e das igrejas de ayahuasca fizeram suas declarações na plenária final. A “Carta Aberta dos Povos Indígenas do Acre – Brasil” manifestou o desejo de seus signatários de construir um futuro em comum e colaborar para o debate sobre o uso da ayahuasca por toda a humanidade. Contudo, eles clamaram pelo respeito à diversidade do uso feito por povos indígenas e insistiram em sua participação, consulta e reconhecimento como os originais detentores da ayahuasca.

Como não houve nenhuma decisão definitiva – especialmente sobre importantes questões, como o registro da ayahuasca como patrimônio mundial – e sem a devida consulta a todos os indígenas ayahuasqueros, foi proposta a realização de um congresso indígena. Com isso, se tentará decidir de forma coletiva e inclusiva as ações que os povos nativos da Amazônia desejam empreender para se envolverem no universo cada vez mais amplo da ayahuasca.


Jaye Renold


Discurso original de Daniel na íntegra:

Mba’éichapa! Puama!

Cheréra Iberê.

Bom dia!

Meu nome é Iberê.

 

Sou do povo M’byá, M’byá Guarani.

M’byá significa humano – eu sou do povo humano.

Antes de ser M’byá, nós éramos Tapejara. Tape… Jara… – Povo que caminha, Povo caminhador…

Agradeço o convite e, hoje como ontem, como anteontem, pensei muito se viria ou não viria para a II Conferência. Ouvi falar também que teve uma primeira Conferência – uma conferência em que se confere algo. Gostaria de pensar muito sobre o que queremos conferir aqui.

Mas… gostaria de não estar aqui, também, por outro motivo, por muitos…, um deles é que eu não sou o mais apropriado para falar sobre a cultura do meu Povo, gostaria que tivesse sido Che Ramói – Ramói Ete… meu avô primeiro, mas ele não está aqui. Gostaria que fosse o Che Ru, o meu pai, mas ele não está aqui – não pode entrar. E… hoje, eu vim descobrir e olhar no olho de cada um de vocês: humanos. E descobrir, também, aqueles que nos descobriram há mais de 500 anos.

Fomos convidados na nossa própria casa. Somos estrangeiros em nosso próprio território. Vi o título (também) da minha “fala”, até achei que fosse algum parente, com brincadeira: A Introdução da Ayahuasca entre os Guarani. É como se fosse ontem, mas eu preciso contar uma história pra vocês: –Antes dessa terra ter Senhor, ter Amo, ter nome, ser América..–Nós andávamos por aqui, como todo Tapejara, buscando o Yvy Mara-eÿ, a nossa Terra Sem Males. Nós andávamos todo esse Continente.

Vocês ouvirão as palavras em Guarani, outros dizem, Tupy, são co-irmãs, do Sul até lá em cima! Como aprender? Lhes digo: nós tínhamos os nossos Peabiru, alguns dizem Tape Abiru– são os nossos caminhos originários, os nossos Caminhos Ancestrais. Alguns deles ainda estavam marcados, outros só os pajé, os Karaí, sonhavam e viam – é por aqui! Era necessário então saber da força que têm os sonhos! E é pelos sonhos que nós resistimos! Com os sonhos se luta! E não há outra maneira de começar esta “fala”, sem dizer das lutas cotidianas que nós travamos. Uma luta contra o desaparecimento. Contra o desaparecimento de nossas culturas.

Eu gostaria de dizer que toda vez que você toma um copo de Kaapi (raramente se pronuncia o verdadeiro nome – nome genérico), – nós também não chamamos de ayahuasca, nós temos nossos nomes antigos – toda vez que nós tomamos, é um copo, mas é um copo da nossa Cultura! É um copo dos nossos Ancestrais! E não é uma planta. Não é uma planta. Não, para nós. Nós temos a mania de pensar que somos livres! Que por sermos humanos temos irmãos. Então, são nossos irmãos, são nossos parentes – que não vieram antes e não vieram depois. Foram feitos quando Nhanderu Vuçu fez o mundo, fez tudo e fez também as nossas plantas de cura. E as nossas plantas de cura são nossos parentes.

Quando agente fala parente, cada povo tem uma maneira. Para o parente Huni Kui – é txai – significa que eu o reconheço como meu parente. Nós também falamos – rëtara – parente. As plantas, que se chamam plantas, são nossos parentes. E os nossos parentes não são só os da nossa família, são toda a comunidade. E não é só a comunidade, são todos os humanos, e não para pelos humanos, são todos os animais, são as pedras, é o ar que passa – e lembra pra gente – das nossas origens…

Nós viemos descobrir os que nos descobriram. E eu tinha uma pergunta: – Como, mais de mil idiomas diferentes foram (des)aparecidos por pouco mais de seis? Quinhentos anos nós buscamos nas fagulhas, no resto que sobrou das queimadas. Aqui tiveram as Correrias, no Sul teve os Bugreiros, que era uma outra forma de dizer daqueles que caçavam, matavam indígenas. E ainda tiveram também os Bandeirantes – a maioria deles estão com nomes em ruas, praças e são chamados de heróis. Mas sobre nós, nada testemunha a nossa passagem nessa terra. Não tem um lugar que se diga, ali é um território Guarani, ali é um lugar de um povo Jaminawa – os parentes Jaminawa continuam andando nas cidades, aqui em Rio Branco – e aí eu ouvi um dia desses – por que, que não voltam pras suas casas. O parente me olhou e riu, né – porque a casa é aqui! Aqui também era território Jaminawa. E aí? Voltamos? Voltamos. Vieram. E aqui permaneceram.

Gostaria de não ser eu a lhes dizer. Sou muito novo. Não sei nada. Mas dos que são mais velhos a maioria foi assassinada. Lembrem-se dos Guarani Kaiowá. Toda vez que você abre alguma notícia está lá, a naturalização do que não é natural, a naturalização da violência, a naturalização do esquecimento. Todos os dias nós somos negados, mas nada se pode fazer, nada se pode tirar de nós – que é a nossa própria dignidade. Gostamos de pensar que somos livres, de modo que jamais ouvirão de nossas bocas, que somos líderes de alguém. Os Guarani gostam de pensar que são autônomos. Autônomos. Gostam de pensar que pensam por si os seus próprios caminhos. Se não for os mesmos caminhos, nós olhamos, nos levantamos e seguimos o nosso.

Na nossa cultura, nós temos o guardador do Opy (casa de reza), o Opy Gua, o Opy Guasu, temos muitos tipos de paï (pajé). Cada um tem uma função. Mas isso não significa que quem não é pajé não sabe fazer o vento ventar. Não significa que quem não é pajé não conhece as belas palavras. O meu Povo tem três idiomas diferentes: um idioma que todos falam; o outro idioma é o idioma que só falam os Opy Gua, os Karaí, – os pajé; e o terceiro idioma é o idioma do silêncio. Nós guardamos, no nosso silêncio.

Querem descobrir a nossa cultura, pois nós temos que olhar no coração e ver se ele é transparente. Se não for transparente, mil anos se passarão e vocês não saberão nada sobre nós! Passaram-se quinhentos anos e vocês não saberão nada sobre nós, a não ser o que nós lhes dizemos! Nos mataram e, mesmo assim, não sabem nada sobre nós! Eu vou lhes dizer – sobre o desenvolvimento que disseram que viria. Nós olhamos e rimos. Sobre como nós devemos preservar a nossa floresta. Nós olhamos e rimos. – porque o parente que vem de longe, de outro mar, – é bem-vindo. Mas ele preservou o que ele tinha lá?…

Peço desculpas, eu gostaria de falar pra vocês – sobre as palavras bonitas do meu Povo, sobre as histórias do meu Povo, mas nesse momento acredito que o mais importante é falar como o meu Povo, como nós estamos sendo massacrados. Hoje, nesta Conferência, nós vimos aquilo que não gostamos de ver – que é, cota pra indígena. Se os meus parentes não são bem-vindos num lugar, então eu também não sou.

Peço desculpas, se minhas palavras se tornaram quentes, é porque as fagulhas da última chacina, da última queimada, ainda permanecem vivas na nossa memória. É daí que devemos começar. Meus parentes morrem todos os dias. Morrem mais do que no Iraque morreu – do Iraque todos ouvimos falar– dos parentes mortos não se ouviu falar. E não é apenas o morto por faca, por tiro, é a morte cultural, é a imposição do esquecimento: quando lhe dizem – você não é! – ou, você só é o que eu quero que você seja! – Como um quadro. Como uma fotografia fixa na parede, que você interpreta. Mas ela está parada. Nós não! Nós vivemos e nós sangramos. E não temos medo nenhum de partir para o outro lugar – porque lá tem mais parentes nossos do que parentes que não são nossos. Né?…

Enquanto eu vos falo, neste exato momento, está acontecendo uma reunião para tratar sobre a patrimonialização da Ayahuasca. E, mais uma vez, nós saberemos apenas do resultado. E, a pergunta que eu faço é: – o que foi feito com a nossa cultura sagrada?

Não se esqueçam, Ro repy! – Nós estamos de olho! Nós cobramos! Não se esqueçam!

Nós somos calmos, nós somos pacatos, nutrimos o silêncio. Mas nossos corações vomitam fogo! Não se esqueçam!

Pra terminar, só quero lembrar a presença dos parentes que aqui estão, e dos que não vieram porque não quiseram, dos que não vieram porque não puderam, e dos que não vieram em forma de protesto – os parentes que têm a nossa pele e têm o nosso sangue. Mas tem uns parentes que não precisam nem da nossa pele nem do nosso sangue para ser parentes: eu falo do Txai Macêdo, que escreveu palavras sábias. Eu falo do parente Jairo – que tá na FUNAI, e não quis vir. E falo também de todos os parentes que resolveram pensar os seus próprios mundos. De forma autônoma, livre e autogestionária. Como nós sempre fizemos.

Muito Obrigado.

Yayoecha kuri!           

Tupã ndiveño!

Hasta Siempre!